Inspirações

O que eu aprendi em uma aldeia indígena


Quem me acompanha no INSTAGRAM sabe que tive uma linda experiência em uma aldeia indígena dos Krahôs, em Tocantins, norte do Brasil.
Os índios Krahôs ainda preservam muito sua cultura e costumes, e somente acerca de dois séculos tiveram o primeiro contato com a civilização ocidental. Comunicam-se por meio da sua língua materna, que é absolutamente indecifrável para nós, não índios, que não estudamos linguística.

A aldeia indígena não é aberta ao público e ao turismo; somente mediante autorização é possível entrar lá. Fui a trabalho, por um órgão federal, acompanhada de um grande antropólogo da região que conhece as lideranças das tribos locais e soube mostrar muito mais do que imaginava.

ORGANIZANDO SUA VIAGEM

Essa aldeia indígena está a mais ou menos 500km de Palmas, no município de Itacajá, pequena cidadezinha de terra ao leste de Tocantins. Alguns quilômetros rodados e uma boa estrada de terra me levaram à tão esperada experiência.

Impressões na Aldeia Indígena dos Krahôs

É claro que eu tinha milhões de expectativas, como acho que qualquer um teria. Quando cheguei lá, logo vi que, por falta de conhecimento, minhas expectativas não seriam totalmente atendidas. Nem eram para ser, não mesmo. Mas o que quero dizer é que não sabemos nada sobre uma aldeia indígena; não sabemos ao certo o que é preservar seus costumes, quão boa é a aproximação com os brancos, como eles vivem e se socializam entre si. Achamos que sabemos sobre eles, mas na realidade não sabemos nada. Somos meros cidadãos pretensiosos que acham que sabem de quase tudo.

Enfim, minha impressão foi de surpresa. Havia uma pequena escola indígena que o município construiu na aldeia, um mini banheiro que funcionava quando tinha água e um pseudo postinho de saúde. O restante era, de fato, a tribo por ela mesma.

Com costumes circulares, o centro da aldeia é composto por um campo de areia onde são feitos seus rituais, danças e jogos. As casas estão em volta desse campo, uma ao lado da outra, de barro e palha formando um grande círculo. São quase 400 índios e cerca de 50 famílias naquele local.

As casas são simples e não contêm nenhuma mordomia, claro, dentro dos nossos padrões. Algumas sem divisões internas e apertadinhas oferecem redes ou esteiras no chão para dormir. A comida é feita ao lado de fora de cada casa, em uma espécie de fogão à lenha, junto com bichos, terra e crianças.

Como as casas são de famílias e pequenas, não dormimos com eles. Estendemos nossos colchões dentro de uma sala de aula, afastando as cadeiras e ali foi nosso pernoite. Não havia a possibilidade de dormir com os indígenas, então: ou seria a sala de aula, ou algum hotel doméstico na cidade mais próxima dali. Preferi ter a experiência de ficar ali.

Sentindo a Aldeia

O calor de Tocantins não é brincadeira. Em pleno inverno, pode-se chegar a 40 graus Celsius. A seca entre maio e setembro também maltrata a vegetação, a população e deixa o clima ainda mais desértico.

Eles vivem de criação de alguns animais, como anta, galinha, porco, caititu. Os homens andam com bermudas e as mulheres, a maioria, com os seios de fora e um pano que fazem de saia.

Fazem pintura corporal com jenipapo e urucum, artesanato com miçangas e sementes, e pequenos cocares de cipó ou palha de buriti.

Utilizam o mato para suas necessidades pessoais e usam o riacho e o rio que têm disponíveis, a cerca de 1km da aldeia, para banho. O rio é de água escura, mas cristalina, limpo, rodeado de verde e animais. Eles nadam e se banham com as roupas que estão ou nus. Aprendem desde cedo a nadar e têm uma relação muito próxima com a água.

Como eu estava nesse processo de imersão, quis ao máximo viver como eles vivem e experimentar de fato os costumes. Infelizmente não chegamos a comer o que comiam pois, como disse, cada família faz seu alimento, e chamar um branco para comer em sua casa ainda não é um hábito praticado.
Mas nadamos em um rio incrível todos os dias pra refrescar e tomar o banho diário. Muitos me perguntaram se eu consegui me desprender e nadar nua.
Bom, nos primeiros dois dias nadei sem a parte de cima da roupa, e claro, não foi assim tão fácil. Afinal, além dos índios, tinha também a equipe com quem estava trabalhando. Mas nessas horas muita coisa vem à tona. O que eu estaria perdendo? Qual o meu medo? Quais são os meus limites e quais são os limites dos outros que tomo para mim?

Percebi o tanto que ligamos para a opinião alheia. O quanto deixamos de fazer o que gostamos ou desejamos experimentar por medo do julgamento do outro, do olhar de desaprovação. As amarras sociais nos prendem mesmo, e só nos damos conta quando nos vemos em situações como essa.

Nos prendemos tanto à aparência e menos às energias, à empatia pelo outro. Vivemos em prol da estética, egocêntricos e vaidosos. Não respeitamos as diferenças, pensamos de forma hierárquica e agimos da mesma forma nas nossas atitudes. São tantas coisas que nos prendem ao comodismo que sair do usual, sair da inércia, não é e nunca será fácil. A questão é que nós pensamos assim, e não significa que os demais também compartilham do mesmo sentimento ou da mesma visão de mundo.

Não ver tantas semelhanças dentro de uma sociedade é incrível e confuso ao mesmo tempo. Não estamos acostumados a ver que nem todos estão presos à questões sexuais ou que o julgamento perante o outro é inerente à qualquer pessoa… É possível, sim; é outra dinâmica de funcionamento. A questão é que estamos muito longe de qualquer vivência semelhante. Onde será que nos perdemos? Onde deixamos tanta coisa “pura” ir embora.
Enfim, devaneios à parte, o tempo pra eles é outro, assim como o olhar para a vida. Tem muito mais pureza, mais leveza.

Achamos normal imaginar que, ao tirar a roupa, o outro irá avaliar seu corpo ou o desejar. O que era pra ser natural se torna tabu. Sim, eu sei que mudamos ao longo do tempo e que hoje em dia isso não é comum. Mas por que não aproveitar momentos como esse que tive para se desprender de algumas coisas que nos limitam?
Pois bem, no terceiro dia eu consegui finalmente nadar absolutamente nua. E olha, que LIBERTAÇÃO. Sensação única de poder ser, sem se importar com nada. Simplesmente se integrar à natureza de uma forma genuína e pura. Nenhum olhar estranho, nenhuma manifestação de desejo sexual, nenhum limite ultrapassado. Somente o meu, por desejo e vontade própria.

Nem todos que estavam comigo conseguiram fazer a mesma coisa por completo. E entendo, não é uma atitude qualquer. É tirar tudo aquilo que te mascara e esconde; é colocar seu corpo, sua casa sagrada à mostra para todas as pessoas presentes. Mas quem ultrapassa essa barreira invisível, certamente dá um passo largo à frente e sente o quanto podemos ser e sentir mais.

Enfim, dei esse passo à frente e foi lindo! Nadei no Rio Tocantins com uma felicidade e liberdade indescritível.
Se quiser saber um pouco mais, também tive uma experiência em uma praia nudista na Colômbia, veja esse post Parque Tayrona – Um paraíso perdido na Colômbia

Outros sentimentos e impressões

Outra coisa que foi muito intenso foi perceber claramente o quanto estamos desconectados de nós mesmos. A nossa vida nos afasta dos momentos com nós mesmos, em que paramos pra escutar nossa respiração, nossos batimentos cardíacos, nossos sentidos, nossa paz interna.
Para os Krahôs, e acredito que pra maioria das etnias indígenas, isso além de normal é essencial para a saúde e para a conexão divina. É comum ver vários indígenas sozinhos em um canto, apenas observando o balançar das árvores, ouvindo o canto dos pássaros, vendo a terra voar no campo de areia.

Conversando à beira do rio com um índio, que em português se chama Roberto e na língua deles não sei nem escrever, soube que quando foi pra cidade grande ficou doente. Não entende como conseguimos respirar ar com cheiro ruim, viver em locais apertados e fechados e ouvir tantos barulhos não naturais. Disse que a cabeça doía muito, ficava confuso e com sensação de morte.
Achei tão profundo. Por isso que nós, que estamos nessa correria da vida, nessa, segundo ele, sensação de morte, nos sentimos tão bem quando estamos em contato pleno com a natureza. Cada dia mais nos afastamos do natural e nos embrenhamos na tecnologia, no trabalho, no fora e não dentro. Quando paramos pra observar os pássaros, tomar um banho de cachoeira ou mar em uma praia vazia, nos conectamos com nós mesmos e com a Terra. Sentimos de onde viemos e para onde vamos quando passarmos dessa pra melhor….

Vemos que a paz que procuramos está dentro de nós e não na viagem de férias, por exemplo. Pude experimentar outra relação com o tempo e, consequentemente, com a paz e a tranquilidade.

Percebi também o quanto não respeitamos os saberes dos mais velhos. Agora o que nos vale são as informações das instituições, da ciência, dos jornais. Pouco importa o que nossos avós faziam quando estavam doentes, ou quando estão tentando nos ensinar algo. Afinal, já estão ultrapassados, né?
Pois índio respeita demais os anciãos, que são considerados mestres. Um senhor sabe quando ele tem que fazer uma queimada para evitar que, na seca, a queimada natural tome proporções enormes. Uma senhora sabe qual erva usar pra sanar diversas doenças, tocando a barriga de uma mulher grávida sabe qual posição o bebê está, às vezes até qual o sexo. São verdadeiras parteiras… E hoje tanta gente pagando muito para ter um parto humanizado em casa, porque o natural agora é caro.
Reconhecemos esses saberes deles/as? Não…. De nada nos serve, infelizmente, e isso é um dos sinais que contribui para a invisibilidade desse povo. A falta de reconhecimento e de valorização da sua cultura e dos seus conhecimentos parece pouco, mas é parte da nossa contribuição para o aniquilamento deles.

Quando um ancião fala na aldeia indígena, todos têm um respeito absurdo. A propriedade com que eles falam, ensinam e questionam é impressionante. As histórias de lutas por sobrevivência e manutenção de suas terras e costumes são de doer o coração. Poderíamos aprender tanto com esses valores…

Percepção perante o Estado

Um povo que na própria terra não pode usar sua língua materna. Simplesmente precisam aprender o português para lutar por seus direitos. Você sabe o quão difícil pode ser aprender outra língua.
Imagina se não pudéssemos falar o português no Brasil? Pois bem, eles precisam também vestir roupas e deixar suas ferramentas culturais de fora das cidades, dos tribunais, do senado. São obrigados a se adaptarem aos costumes dos brancos para tentar ter um pouco mais de participação ativa na política.
Não recebem praticamente nenhuma assistência dos municípios que fazem parte. Nenhuma valorização cultural, nenhuma abertura para participação em conselhos municipais, nenhuma oportunidade de trabalho para o que saíram das aldeias.

A terra que era deles agora é do Estado, e cada vez mais menos terra se tem pra índio. É triste ver que parece ser uma luta em vão, que talvez daqui alguns anos não exista mais nenhum ali pra contar história.

O trabalho que fui fazer na aldeia indígena busca qualificar esses  índios pra atuarem de forma mais efetiva na política pública de cultura do município. Para continuarem lutando pelos seus direitos, pela preservação cultural e pela oportunidade de participação pública, eles precisam estar capacitados para se articularem. O estado não abre diálogo para minorias, ainda mais para pessoas que nem português direito falam. Só com formação eles poderão se aproximar mais das políticas locais e se inserirem mais pautas de governo.

Sei que é pouco e que essa questão continua sendo um desafio tremendo. Mas fico feliz de ter tido esses momentos com eles e ter feito, de alguma forma, minha parte.

Fora isso, mal sabem eles o tanto que me ensinaram, o tanto que foi intenso para mim passar esses dias lá.
Viveria essa e outra experiência semelhante facilmente de novo. É pra vida toda.

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*Confira mais sobre Tocantins*

Luisa Galiza

Veja os comentários

  • Sensacional! Lendo seu depoimento, senti novamente o gostinho de viver junto aos Krahos. Eu tive esse grande privilégio alguns anos atrás no junto ao Projeto Rondon. Foi uma experiência que mudou a minha vida - e as perspectivas dela. Me inspiro em você... Continue vivendo!

  • Deve ter sido uma sensação única. Poder literalmente se despir de amarras e poder ser livre. Nossa achei incrível, realmente não temos ideia de quem são os indígenas e achamos q sabemos tudo. Queria ter essa oportunidade tbm.

    • Que bonito Solange...Realmente nos falta esse empatia de ver que o mundo é muito mais do que somos e do que achamos né? Obrigada pela mensagem!

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